Há uma frase de Roberto Marinho, o fundador da rede Globo, que é mais do que um chiste: “Dos meus comunistas cuido eu”, disse ele, em 1964, quando a ditadura começou a interferir diretamente nas redações. A frase faria sentido também na televisão, que ele fundaria no ano seguinte. Mais ainda do que no jornalismo, na parte criativa da TV era imprescindível contar com figuras de esquerda, ainda mais nos anos 1960-70, quando a maior parte dos artistas e intelectuais o era.
Portanto não é exatamente surpresa que uma televisão como a Globo faça jogo duplo, como em duas questões recentes de cunho, digamos, feminista (ainda que tratem de crimes facilmente definíveis/ aferíveis, acabam se revestindo de grande significado simbólico, ao envolverem uma grande rede). Trata-se dos casos José Mayer e da última edição do Big Brother. A eles se soma o caso do cantor sertanejo Victor Chaves, da dupla Victor & Leo, acusado de agressão pela mulher, que acabou se refletindo na programação, quando ele foi afastado do The Voice Kids.
Nos três casos, as decisões da Globo, em última instância, foram acertadas. O que obviamente não foi suficiente para que os detratores da rede a acusassem de hipocrisia – no que não deixam de ter razão. Mas o meu ponto no caso não é a hipocrisia ou o oportunismo estratégico da emissora, mas a pressão simbólica que levou a ser (mais ou menos) rápida e contundente no veredito (o que realimenta a pressão simbólica, repercutindo o impacto das decisões).
O caso mais surpreendente, de certa forma, foi o de Victor. Sabe-se lá se por informação insider, a Globo foi muito rápida em suspendê-lo do programa (ainda que tenha dito que o cantor é que pediu afastamento, em uma nota de repúdio à violência lida dois dias após a denuncia). Os episódios já gravados foram reeditados para praticamente apagar participação dele. Victor conseguiu que sua mulher retirasse a acusação de agressão, e fizesse uma “meia retratação” nas redes, quando o caso parecia esfriar.
Mas ele acabou indiciado cerca de cinco semanas depois da ocorrência, por indícios colhidos pela polícia na análise das câmeras do prédio em que o casal reside. A Lei Maria da Penha determina a continuidade das investigações em caso de agressão contra a mulher, mesmo que a vítima não represente. Ou seja, a decisão da Globo foi prudente, e a manteve fora da encrenca.
No caso José Mayer, ainda que tenha sido menos rápida, a Globo deu um salto espetacular sobre o problema. Mais até do que a Folha de São Paulo, que publicou inicialmente a denúncia de assédio persistente do ator contra a figurinista da emissora Su Tonani, no blog feminista
Agora É Que São Elas. Postado na madrugada do dia 31/03, o texto foi retirado do ar pela manhã, pela direção de redação, para “apurações” (o que expôs um certo vácuo decisório, já que blogs não têm seu conteúdo previamente lidos por editores).
O problema é que, no início da tarde, quando o jornal finalmente publicou uma nota expondo a situação em sua edição virtual (o texto voltou ao blog no final da tarde), já havia uma grita, e até um abaixo-assinado de personalidades quanto à possível tentativa de ocultação do assunto. Num primeiro momento eu supus que a Folha pudesse ter sido pressionada pelo jurídico da emissora, mas aparentemente tratou-se do caso do jornal ser mais realista que o rei.
Nos dias seguintes, a Globo mandou representante a reuniões de solidariedade de funcionárias, inclusive uma na casa da atriz Taís Araújo, e sinalizou apoio ao movimento. Na terça, enquanto atrizes e outras profissionais usavam e publicavam selfies com a camiseta com os dizeres “Mexeu com uma mexeu com todas” e “Chega de assédio”, foi ao ar uma nota bastante dura em que afastava Mayer da próxima novela em que estaria escalado, enquanto a direção afirmava em mail aos funcionários a concordância com o movimento, que foi inclusive mencionado e mostrado na programação.
A Globo, casa onde ocorreu o assédio, expôs-se menos que o veículo que o noticiou, a Folha. Já Mayer jogou a toalha, finalmente admitiu que errou (inicialmente ele estava atribuindo a atitude à sua personagem abusiva, como se tudo fosse uma espécie de laboratório), mas disse que era um problema geracional, e que “não teve a intenção de ofender, agredir ou desrespeitar” (ainda que, ao longo de oito meses, a moça tenha registrado seguidamente seu desconforto). É um pouco como disse o goleiro Bruno, “Isso serve pra mim de experiência”.
Ao mesmo tempo, um terceiro episódio de machismo se desenrolava em frente às câmeras, na fase final do Big Brother Brasil. No mesmo Vídeo Show que mostrou e conversou com atrizes vestidas com a camiseta, Otaviano Costa se desculpou ao vivo por ter rido e comentado que a atitude agressiva do participante Marcos era boa para a audiência no programa, num bloco anterior. O apresentador acabou
suspenso por três dias por ter feito piada de um assunto que estava mantendo a direção e a comunicação da emissora em tensão (à flor da pele, ao que parece).
A coisa pioraria no BBB. Marcos, que teve durante o programa um relacionamento com Emilly, já havia crescido para cima de outras participantes. É aí que aparece um primeiro paradoxo interessante. Apesar do notável e crescente descontrole do cirurgião plástico de 37 anos, ele foi poupado pelo público em sua última ida ao paredão. Porque a preferência do público se inclinava para Emilly, de apenas 18, e manter o casal era
(em tese) facilitar as coisas para ela. Mas a tag Força Marcos também causou repulsa nas redes.
A fúria de Marcos viria a resolver o impasse. Ao colocar o dedo na cara da namorada, encurralá-la em um canto e machucar seu braço, ele atraiu a intervenção da polícia. A diretora da Divisão de Polícia de Atendimento à Mulher do Rio (Deam), Marcia Noeli Barreto, fez registrar a ocorrência ao ver as imagens do programa, e determinou que a Delegacia da Atendimento à Mulher de Jacarepaguá acompanhasse o caso. A delegada Viviane da Costa Ferreira Pinto esteve na casa, ouvindo os dois no “confessionário”. Na perspectiva de que a polícia pedisse uma medida preventiva, a Globo não teve como não decidir pela expulsão imediata de Marcos (outra autoridade, a juíza Teresa Cristina Cabral Santana Rodrigues dos Santos, integrante da Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Poder Judiciário do Estado de São Paulo, também havia se posicionado p
or uma intervenção no programa).
Não foi a primeira vez que a pressão policial levou à expulsão de um homem do reality. Em 2012, o participante Daniel foi acusado do estupro de Monique, que havia desmaiado, bêbada, ao ficar com ele. Ela não lembrava de nada; só percebeu que acordou sem shorts. Uma equipe de polícia também esteve na casa, provocada pelas postagens nas redes, antes que a Globo deliberasse. Daniel saiu. O caso acabou arquivado por falta de provas.
Sabemos que o time de psicólogos da Globo escolhe os participantes como “ingredientes” para gerar certas situações atratoras de audiência – incluindo pegação. Em 2012, eu escrevi a respeito do fato de que a Globo disponibiliza menos camas que participantes (nem sei se ainda é assim), e bebida à vontade nas festas, com óbvias intenções. E é claro que a treta Marcos-Emilly levou a audiência (e as votações) ao ápice. É isso que a televisão quer; e é isso que as pessoas que estão lá aceitam, quando aceitam estar nesse aquário, ou jaula, da condição humana encapsulada. Também é isso que leva muita gente à indignação contra a suposta “correção” da Globo.
No entanto, como eu dizia do caso Mayer, há uma outra camada, a simbólica. Por menos que gostemos, o BBB retrata em algum nível os embates culturais (incluindo os sexuais) da sociedade. Quem demoniza a Globo automaticamente ignora que uma rede de televisão dialoga não só com os círculos de poder, mas também com o estado psicossocial de uma nação, na outra ponta. Não é exagero dizer que, em outras épocas, a rede já teve um papel formador positivo – na música, além da teledramaturgia, por exemplo (ainda que seja difícil para os mais jovens imaginarem isso).
Em 2006, numa edição do programa na Austrália, um participante segurou uma moça enquanto outro passava o pênis no rosto dela (
sim, isso aconteceu); e não só os dois homens foram expulsos como o primeiro ministro falou em tirar o programa do ar. Na África do Sul, por outro lado, em 2007, Richard Bezuidenhout despiu e acariciou a participante Ofuneka Molokwu, causando revolta, e mesmo assim venceu o programa.
Se Emilly já levava vantagem antes do ocorrido, a expulsão de Marcos abriu um outro paradoxo. Confusa, fragilizada e dividida em relação ao ficante, ela foi acolhida pelo carinho das outras duas participantes restantes, que colocaram a sororidade à frente da disputa. Também foi acolhida pelo carinho do público: mesmo assim (ou por isso mesmo) tornou-se a inevitável vencedora do programa.
Uma situação interessante, que tem tudo a ver com a posição da mulher que ainda busca a companhia e a aprovação masculina para ir em frente – mas que é acolhida nos choques com o sexismo, quando a coisa desanda. Leve a Globo a vantagem oportunista que levar (e ela sempre vai tentar levar), com um empurrãozinho da sociedade – e da polícia – sempre é possível se emitir algum sinal civilizatório.
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