segunda-feira, 4 de janeiro de 2016



A lama, a zika, o manicômio: retratos de um Brasil submerso

Matheus Pichonelli
14 de dezembro de 2015

Por Matheus Pichonelli e Daniela Lima
Digam o que quiserem: não há nada mais simbólico da nossa letargia política do que o rompimento da barragem em Mariana (MG). Resultado de um processo ainda mal contado de contenção e acúmulo de resíduos em local, ao que tudo indica, de espaço e estrutura inadequados, o estrago percorreu centenas de quilômetros debaixo de nosso nariz, arrastando o que havia de vida humana, animal e vegetal pelo caminho.
Parecia uma metáfora, mas era o desfile em homenagem à nossa incapacidade de prever, agir e formular respostas diante de colapsos em iminência. Levou ao oceano mais do que o cinismo de um processo histórico viciado em jogar para debaixo do tapete nossos esqueletos não enterrados. Levou para o mar a prova confessa da nossa incompetência.
A grandiosidade da tragédia é proporcional à sua transversalidade. A Samarco, empresa responsável pela barragem mal construída, é o resultado da aliança entre o capital nacional/estatal (a Vale) com o capital estrangeiro (BHP Billiton), uma herança do tempo em que desbravadores, daqui e de fora, esfolavam o que havia no entorno da riqueza e corriam para outras bandas quando o bem primário se esgotava, deixando no caminho um rastro de deserto e destruição.
Foi assim na corrida do ouro, no ciclo da borracha, na cultura do café, da cana, Da exploração do pau-brasil. Ao poder público caberia monitorar e/ou regular a exploração predatória, não fosse também parte dele, numa simbiose iniciada nas formas de financiamento de campanha que não identificam cor nem projeto, apenas prospecção e negócios.
Em 2015, a multidão viu em pânico, a multidão viu atônita, como na Rosa dos Ventos de Chico Buarque, o seu falso despertar. Porque tudo aqui opera aos solavancos, entre prisões e desbaratamento de gangues e carteis, mas recua até quando avança: nossa maior aposta para o futuro, a exploração do petróleo na camada do pré-sal, acaba de ser condenada, na Conferência do Clima em Paris, a se tornar uma riqueza do passado em desuso.
O Planeta caminha para a substituição paulatina dos gases de efeito estufa, como o dióxido de carbono que se acumulam na atmosfera e causa o aquecimento global, por fontes alternativas de energia.
Estamos prontos para o debate?
Ou falar em aquecimento global será, por aqui, conversa também de petralha ou tucanalha, impossível de ser colocado à mesa como uma questão de TODOS – como é também a violência contra negros, pobres, mulheres e população LGBT?
“Foi você”. “Não, foi você”. “A culpa é sua”. “É sua”. “Canalha”. “Corrupto”. Os sopapos são proferidos em margens opostas; no meio passam toneladas de lama tóxica que fingimos não ser nossa.
Os momentos mais agudos de polarização são também os momentos mais escassos de inteligência. É nesse miolo que passam desapercebidos os falsos profetas, os falsos conciliadores, as falsas pontes para o futuro.
É o que se pode concluir quando, por exemplo, a presidenta que mentiu para se eleger passa a ser alvo do adversário derrotado nas urnas (que provavelmente não mentiu tão menos assim) e para sobreviver no cargo abre as comportas de postos-chave para aliados de ocasião.
Um deles, representante da ala rebelde da Câmara que mal assumiu o Ministério da Saúde, acaba de instalar na coordenação geral de Saúde Mental um conhecido militante da contra reforma psiquiátrica.
Anos de debates, estudos e encaminhamentos em direção à humanização do tratamento substituíram, na última década, o doente pelo usuário, o preso pela pessoa, e possibilitaram a criação, ainda insuficiente, dos chamados centros especializados de atenção psicossocial. Tudo porque, em algum momento, fomos capazes de ver a lama – e as condições desumanas, características de um holocausto, de uma fábrica de internações que encheu as burras de seus gestores e destroçou vidas lançadas às jaulas quando mais precisavam de atenção. (Exagero? Clique NESTE link e tire as próprias conclusões)
Pois esses anos e anos de luta antimanicomial estão agora sob risco de naufrágio com a nomeação para o posto-chave de Valencius Wurch, diretor, nos anos 1990, da Casa de Saúde Dr. Eiras, o nefasto hospício do Rio de Janeiro. Não se trata de uma escolha política, mas de uma opção pelo retrocesso: voltamos algumas casas entre os anos 1990 e 1960, quando generais tomaram posse e espalharam pelo país equipamentos como manicômios e prisões políticas para instalar cordões autoritários entre o normal e o patológico, o produtivo e o improdutivo, o certo e o errado, a pessoa e a não-pessoa.
Enquanto o mundo escancara janelas, nós vedamos as portas. Nosso acerto de contas adiados com o passado começa a cobrar a fatura em forma de…passado.
“Sua vida melhorou nos últimos anos”, perguntam os recenseadores interessados em radiografar uma espécie de recall político da última década sem qualquer margem para o entrevistado estourar as caixinhas diagnósticas e questionar: “Qual vida?”.
Vidas temos muitas; o que nos faltam são horizontes, e nem todos se resumem a dinheiro, partido ou escolhas. “Passo bem, obrigado, mas esse lixo debaixo do tapete ou do leito do rio não vai acabar bem”, podemos responder.
Já não acabaram. Isso talvez explique a baixa disposição em sair às ruas e atacar cabeças sem identificar a raiz. Os atos anti-Dilma do último domingo, por exemplo, parecem não ter qualquer resposta ao fenômeno Eduardo Cunha, acusado por cinco delatores da Lava Jato de corrupção e lavagem de dinheiro. No fim, a claque serve como plateia de uma briga para saber quem vai subir num cavalo que ninguém sabe para onde vai.
E porque não sabe para onde vai é também incapaz de emitir qualquer resposta quando as barragens explodem. Explodem porque estão pobres. Porque operam em estruturas antigas. Porque têm saudades do passado. Porque relegam postos-chave a aliados de conveniência. Porque não se importam com os postos-chave.
A tragédia ambiental da Samarco tem, na essência, a mesma origem da nossa tragédia em outros campos. Das escolas que precisam ser ocupadas pelos alunos para não morrerem por inanição. Dos hospitais despreparados para atender as epidemias mais óbvias – a última delas provocada pelo Zica Vírus, que legará ao futuro uma multidão de pessoas vítimas de microencefalia nascidas em 2015.
Parecem fatos distantes. Só parecem. São resultados da mesma letargia: a que adia debates urgentes para debaixo do tapete e espera a explosão da tragédia para emitir grunhidos em vez de respostas.
Foto: Antonio Cruz/ Agência Brasil