terça-feira, 20 de setembro de 2016




Porque é necessário dessacralizar o nome de Lula

Alex Antunes


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Tu perdeste a tua luz/ Que eu te dei com tanto amor/ Não foi a falta de conselho/ Tu mesmo nunca ligou/ Vai chorar de arrependido/ Quando um dia se lembrar — Mestre Irineu, Cruzeiro Universal, Hino 48
Lula fez, outro dia, um discurso defensivo, que incluiu algumas frases bem esquisitas: “Eu, de vez em quando, falo que as pessoas achincalham muito a política. Mas a profissão mais honesta é a do político. Sabe por quê? Porque todo ano, por mais ladrão que ele seja, ele tem que ir pra rua encarar o povo, e pedir voto. O concursado não. Se forma na universidade, faz um concurso e está com emprego garantido o resto da vida. O político não. Ele é chamado de ladrão, é chamado de filho da mãe, é chamado de filho do pai, é chamado de tudo, mas ele tá lá, encarando, pedindo outra vez o seu emprego”.
Lula confia na sua capacidade de improviso. E, obviamente, estava se contrapondo aos procuradores do ministério público que o acusam, e demais juízes que o ameaçam, ou podem vir a ameaçá-lo. Mas, sem querer, Lula entregou suas graves limitações nessa declaração.
Não vou nem moralizar a parte do ladrão – indesejável em qualquer profissão, mas tanto mais grave nas que lidam com a coisa pública, que é de todos e às vezes ninguém vigia de perto. O que interessa nesse trecho é o que escapa a Lula. E escapa a ele, completamente, a dimensão do sacerdócio na política. Exatamente a que seria necessária para sustentar a enorme dimensão psicossocial que ele adquiriu.
É evidente que os dois mandatos de Lula tiveram enorme impacto no rearranjo psicossocial do Brasil. Mais do que a redistribuição de renda, talvez, houve uma ruptura do elitismo negativo que nos caracterizava. Digo “elitismo negativo” porque, nos países em que a social democracia construiu estados de bem-estar social, podemos enxergar uma forma de “elitismo positivo”, paternalista mas eficiente na redução de danos.
Já nossa elite, no afã de negar o “pé da cozinha” (para lembrar da expressão chacoteiramente utilizado por FHC), costuma ser bastante malévola. É como se tivéssemos herdado esse complexo das capitanias hereditárias, de um ciclo infinito de predação, como se aqui não fosse, ao fim e ao cabo, a casa de todos. E que um pouco de bem-estar comum faz a sociedade evoluir no conjunto.
Foi até aí, até a ruptura simbólica desse ciclo, que Lula chegou. E daí não passou. De novo, para não moralizar, acho que Lula não foi santo nessa trajetória. Digo mais, se santo fosse, essa trajetória simplesmente não seria possível. Um grau de “habilidades mercuriais”, de tricksterismo, de passar da luz à sombra e penetrar ambientes mafiosos sem perder o autocontrole, terá sido necessária. Em termos mais simples, um pouco de picaretagem.
Mas há um momento em que essas habilidades são checadas pelo destino, e têm que reafirmar a que vieram. No tarô, dir-se-ia que é a passagem do mago de feira, do truque de moedas, para o mago que começa a moldar a realidade (não com a energia dele mesmo, mas com a expectativa da plateia hábil e conscientemente canalizada).
Na verdade, em cada mago convivem esses dois, o truqueiro e o sublime – e quando o espetáculo cresce é a hora da verdade, do sustentar ou não a passagem do truquinho à magia portentosa. Eu digo mago e sacerdote com esse mesmo sentido; o sacerdote também tem sua face charlatã. Há um ótimo filme sobre isso, O Homem Que Queria Ser Rei, adaptação de uma história de Kipling com Sean Connery e Michael Caine, que mostra o contrário, quando a veia sacerdotal (= responsável) se manifesta e contraabduz o oportunista.
Já Lula, o que ele revelou nessa fala é que nunca superou aquela dimensão tiozão-sindicalista, a de que o ápice da existência é cada operário com um carrinho na garagem e uma churrasqueira. Carne queimada e gasolina, esse é teu nome. Quando Lula chegou ao auge de credibilidade e aprovação popular, era a hora de ter transmutado as eventuais contradições e/ou picaretagens da sua trajetória em grande magia social; numa transformação real e necessária (arrancar a reforma política, por exemplo).
Mas Lula, ao contrário, fixou-se no mago de feira. Seu gosto pelo jogo político tem algo de perverso; aquela descrição que ele faz do candidato lutando pelo mandato (“Ele é chamado de ladrão, é chamado de filho da mãe, é chamado de filho do pai, é chamado de tudo, mas ele tá lá, encarando, pedindo outra vez o seu emprego”) se aplica com perfeição a um “mago do mal” como Maluf. Que Lula não se furtou a comprar, assim como comprou Sarney, Collor, Renan, Barbalho, toda uma coleção completa e fascinante (e sintomática) de bonecos-donatários-ladrões.
Lula teve várias oportunidades de fazer correções de rumo (“Não foi falta de conselho”, como diria o Mestre Irineu, naquele hino lá em cima. E o destino aconselha na forma de tropeços). Lula poderia ter “lido” o episódio do mensalão de maneira mais prudente, e se saído bem melhor. Não como semideus inatingível. Ele entendeu ao contrário a oportunidade que teve. A sociedade continuou lhe dando todos os sinais do que esperava dele, e do PT – até 2013.
Na verdade, há um momento central nessas escolhas erradas: é quando ele preteriu a ministra Marina pela ministra Dilma. E com um objeto de divergência de enorme simbolismo: a construção ou não da usina de Belo Monte. Preservação versus propina. Sabemos o que ele escolheu – e onde essa escolha nos trouxe.
O engraçado é que, por um escrúpulo invertido, Lula tentou acobertar suas “casinhas maiores” do que a do operário bem-sucedido: o sítio, o tríplex. Que, aliás, seriam totalmente compatíveis com seus ganhos. E é por isso que, alcaponicamente, vai se dar mal (lembrando, Al Capone foi condenado porque, além de tudo, fraudava o fisco. No fundo, é sempre o pensar pequeno).
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Mas, se esse processo é tão óbvio, porque os apoiadores de Lula se agarram a ele, religiosamente? (e o próprio não tem maiores escrúpulos em se comparar com Jesus Cristo – a ilustração é um meme publicado facebook). É porque Lula ficou grande por fora e pequeno por dentro. Trocou seu lugar na historia por um lago com pedalinho, por um apartamento com elevador (essa assombração de Sunset Boulevard). O “castigo Capone” traz uma ironia psicológica, mais do que uma desproporção jurídica.
Seus fiéis ainda se apegam a esse “Lula exterior”, o do culto à personalidade, e comparam teimosamente suas pequenezas com as de FHC e mesmo dos militares (alguns desses fiéis são inteligentes inclusive – mas isso não parece ter nada a ver com inteligência). Ora bolas. Eu mesmo elegi Lula especificamente para acabar com as batotas de FHC, dos milicos e dos tiozões acaju estupradores dos grotões todos, e não para encampá-las. Foi Lula que limpou a b* com meu voto (e não FHC, nem os tiozões dos grotões, nem os milicos, em quem obviamente não votei).
O país só avançará quando passar esse trauma a limpo, e for dessacralizado esse nome. Quando entendermos como e por que uma oportunidade maravilhosa foi criada, e foi perdida. Ou continuaremos a esperar por esse mítico Dom Sebastião que interviria por nosso destino. Mas, ainda desta vez, Dom Sebá não vencerá os “moros”. Esperamos que não. Apostamos que não. Faremos o possível para que não.
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