quinta-feira, 9 de outubro de 2014



As diversas faces do antipetismo, por Matheus Pichonelli

O ódio, o antipetismo e o caráter

Como diria o poeta, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.
Ao fim da votação, tentei analisar, no último post, a tendência de acirramento no discurso tanto de eleitores petistas quanto de tucanos nesta segunda fase da eleição. Escrevi, e mantenho, que o esforço para dividir o “campo inimigo” entre petralhas e tucanalhas era parte de uma politização de arquibancada, redutora do espaço para o diálogo e da assimilação do contraditório. Este era (é) um ponto. 
Não significa que os projetos se equivalem ou que as ofensas sejam distribuídas de maneira equitativa. Apenas que, quando se manifestam, criam o campo propício para o ódio recíproco. E eliminam qualquer exame de consciência ou autocrítica, mutilados durante os picos de polarização. 
Um dos elementos deste acirramento, de fato, tem como origem o antipetismo, um fenômeno tão difuso quanto complexo. Da mesma forma como existem muitos PTs dentro do PT, de Olívio Dutra a Cândido Vacarezza, de Eduardo Suplicy a Agnelo Queiroz, existem muitos antipetismos dentro do antipetismo. Erra quem pensa que ele é apenas um fenômeno de uma elite egoísta e incapaz de aceitar a ascensão, no país, de grupos historicamente marginalizados. É também, mas não só. Se o fosse, não haveria explicação, por exemplo, para o discurso anti-PT que se assentou em representantes das classes populares. Há banqueiros que rejeitam o PT, mas há também motoboys, faxineiros, taxistas e porteiros. E isso só mostra que a questão é mais complexa do que apenas o abismo histórico entre as classes.
A reação difundida, e aparentemente reforçada em 2014, é explicada, em parte, pelo esgotamento do atual modelo de desenvolvimento e pelo alegado cansado em relação aos episódios de corrupção envolvendo o atual governo.
Em condições normais, quando os ventos da economia não são tão favoráveis, o apelo por mudanças passa a ser replicado e direcionado à figura do grupo no poder. Entre 1998 e 2002, quando a economia patinava, Fernando Henrique Cardoso também encarnava os males do país. Era o culpado tanto pela política macroeconômica quanto pela gripe, pelo calor, pelos calos, cravos e espinhas dos eleitores. Com uma diferença: a grita era contra ele, figura pública, e não contra o PSDB, seu partido. Da mesma forma havia o anti-malufismo, e não o anti-PPB (hoje PP), o anti-brizolismo, e não o anti-PDT, o anti-carlismo, e não o anti-PFL (hoje DEM). 
Com o PT é diferente: com a exceção, talvez, de Lula, o apoio ou ojeriza ao partido vem sempre antes de seus representantes. Por quê? Porque é o partido mais conhecido, mais organizado, mais falado e, ainda hoje, mais temido por sua capacidade de mobilização popular, ainda que menor em relação a outros tempos. 
Parte dessa dimensão é explicada pela própria origem da legenda. Surgido do anseio de movimentos populares no fim da ditadura, o PT se distingue por ter tomado impulso nas comunidades eclesiais de base, nos sindicatos e nas universidades, e não em fragmentos de bolo mal repartido dentro da própria burocracia do Estado (o PSDB é uma facção do PMDB; o PSD, uma facção do DEM; o PDT, do antigo PTB, e por aí vai). 
No PT, a imagem do partido é mais forte que as suas lideranças. Estas batem no peito para defender a bandeira. Usam broches com a estrela. Vestem vermelho. Irritam e são irritados, sobretudo com a má vontade da cobertura midiática. E transformam o PT em um partido mais exposto que os demais. Mais exposto, mais falado, mais admirado. E mais odiado, esteja ou não no poder.
Nas rodas de conversa, é comum ouvir eleitores dizendo que jamais votariam, ou que não novamente no PT, após alguma administração considerada desastrosa em sua cidade ou estado. Entretanto, quando a administração desastrosa é conduzida por alguma liderança de outro partido, a crítica se restringe à liderança - muitos nem sequer associam a bronca ao partido. Não se ouve “PMDB nunca mais” ou “Fora PTB”. A grita anti-PSDB existe, mas não está na boca do povo: restringe-se à militância de esquerda.
A força do PT, portanto, é também seu ponto fraco à medida que a população atravessa períodos de desencanto e desânimo com o próprio sistema político. Para quem não gosta de política, o PT é hoje “A” política. A política em sentido pejorativo.
Em ano de eleição, a sigla se torna um alvo preferencial não apenas de quem acompanha o noticiário político e fundamenta seu voto como um contraponto, por exemplo, ao papel do Estado como indutor da economia e da redução das desigualdades, um papel hoje defendido com mais ênfase pelos governos petistas do que por outras bandeiras - para estas, Estado forte se resume a loteamento e a inchaço da máquina pública, o que nem sempre é mentira. Mas o PT não é alvo só de liberais. É alvo também de quem se afasta do debate sob a fumaça da ojeriza à política, aos políticos e a tudo o que vem de Brasília. Os que se dizem desestimulados com a política e passam quatro anos dizendo que todos os políticos são sempre iguais são, muitas vezes, os mesmos que fazem campanha contra o PT em ano eleitoral. Muitos, sem saber exatamente o porquê, reforçam o coro apenas juntando cacos do que ouve aqui e ali sobre “velha política”, “roubalheira”, “quadrilha”.
O que não significa, repito, que a rejeição não tenha fundamento. Mas, como é o partido mais conhecido, mais amado e mais odiado, qualquer erro estratégico ganha dimensão significativa sobre o debate político. Quando os erros se repetem, a gritaria sai do controle. Basta lembrar, por exemplo, que a candidata à reeleição afirmou mais de uma vez que o histórico de seu governo era seu melhor plano de governo, até agora pouco detalhado. Em tempos de acirramento, a autoconfiança pode ser interpretada como mero descompromisso. Ou arrogância. O eleitor, portanto, tem o direito de rejeitá-la, sem necessariamente ser representante da elite ou da vassalagem à elite. (Vale lembrar que, dentro do antipetismo existem, inclusive, ex-petistas. Uma delas por pouco não foi para o segundo turno).
Dito isso, volto ao enunciado inicial: uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Uma coisa é o diálogo inviável que a polarização PT x PSDB produziu desde meados dos anos 1990. Outra é a lógica do antipetismo, que ainda precisa ser estudada a fundo.
Outra, muito outra, é a manifestação de ódio produzida, mais uma vez, diante do resultado das urnas. Como já havia acontecido em 2010, o mapa da votação que mostra apoio maciço ao partido no Norte e no Nordeste virou motivo para certos eleitores tirarem do armário o que guardam de pior nos outros dias do ano. Uns retiram o próprio egoísmo e, enclausurados em regiões mais abonadas, passam a defender um estranho pacto social que flutua entre a demofobia e o separatismo: “os pobres que se lasquem”. É o primeiro passo para achincalhar os moradores do Nordeste e os beneficiários de programas sociais, como se estes fossem seres autômatos incapazes de dissociar o voto da suposta migalha.
Nesses casos, a manifestação não é resultado apenas antipetismo ou do atavismo político. É resultado da presunção. E essa é antes uma questão de caráter do que de opinião política.