“Je suis um perigo”
Matheus Pichonelli – ter, 9 de jun de 2015
Sou cristão batizado e crismado na igreja. Para onde vou, levo um escapulário e um terço que ganhei de minha avó. Por força e habito, me benzo quando passo em frente a uma igreja. E, como cristão, não me sinto em nada ofendido quando uma atriz realiza uma performance para me lembrar que, 2.000 anos após a crucificação de Cristo, muitos são os crucificados deste mundo.
Existem muitas igrejas dentro da igreja. E muitos cristãos dentro do cristianismo. Da mesma forma, existem formas e formas de comunicar o sofrimento. Nos últimos dias, o que mais vi nas redes sociais foi uma tentativa abstrata de nomear um suposto mal-estar entre gays e cristãos. Como se numa “ponta” a outra não houvesse nada. Como se minorias fossem sempre e em todo lugar desrespeitosas com a fé alheia. Como se fossem, inclusive, indispostos a ter a sua fé. E como se um cristão não fosse capaz de provocar, ser provocado e decidir, por si, o que ofende e o que não lhe ofende.
Não preciso de líderes, nem políticos nem religiosos, para dizer com o que e como devo me ofender, mas posso dizer por mim. Dias atrás, ao voltar a uma igreja, ouvi um padre dizer, entre galhofas, como devo me comportar em casa. Entre risos, ele ensinava os fiéis homens a não brigarem com as companheiras quando elas pediam o cartão de crédito. Ensinava, aliás, a não brigar de jeito nenhum. A ser fiel a qualquer custo, a explodir por dentro, a orar em silêncio ao menor sinal de conflito. E a elogiar nossas pobres mulheres mesmo quando elas comportam “uns quilinhos a mais”.
Não sei se, retratadas como figuras interesseiras, incapazes e com prazos de validade, as mulheres daquela igreja que tinham mais a fazer além de pedir o cartão dos maridos se ofenderam com aquela fala. Eu me ofenderia. Como me ofendo ao saber que as transformações do meu corpo são citadas no altar como sintoma de uma decadência que deve, na melhor das hipóteses, ser suportada e empurrada com a barriga.
Sem querer, o padre me dizia para evitar dizer o que pensamos e sentimos em nome de um pacto. Era a benção para morrermos infelizes, se fosse o caso, mas em paz com nossos conflitos – afinal, se é proibido reclamar, todas as vontades e violências a quatro paredes estavam referendadas. Não é nada disso o que busco quando vou a uma igreja, mas este é assunto para outra crônica. Esse padre, afinal, não era “A igreja”. Era um homem, adulto, que jamais se casou, falando algo sobre o qual desconhece. Faz parte.
Fato é que essa demonização do confronto, comum dentro e fora da sacristia, cria uma falsa sensação de conforto. Mais do que isso, evita o desconforto de ver e a rever as coisas com o olhar e a dor do outro. O desconforto de saber que nosso silêncio não é nada solidário com qualquer dor - esta é tolerada, desde que sofrida longe de nós.
O combate a essa ideia, quem diria, aprendi na própria igreja. Aprendi ouvindo uma música a caminho da comunhão. Chamava-se “Pão da Igualdade” e dizia o seguinte:
Viemos pra comungar
Com a luta sofrida de um povo que quer ter voz, ter vez, lugar
Comungar é tornar-se um perigo
Viemos pra incomodar
Com a luta sofrida de um povo que quer ter voz, ter vez, lugar
Comungar é tornar-se um perigo
Viemos pra incomodar
A música fazia todo o sentido quando se falava em paz e acolhimento a partir do exemplo de quem desafiava os poderes e a hipocrisia de seu tempo. A partir dele aprendíamos que não é o alimento que entra no homem o que o torna impuro, mas o que sai de sua boca.
Hoje muitos até podem se sentir constrangidos por professar a sua fé. Mas não podem dizer que esta fé, ao menos por aqui, não tenha voz, vez ou lugar. Basta ligar a TV. Basta saber que ninguém corre o risco de tomar um golpe de cadeado na cara ou ter a orelha arrancada pelo fato de carregar a Bíblia debaixo do braço ou andar de mãos dadas em direção ao templo. Nem vai ouvir “estou orando para que você mude” quando professar a sua fé. Nem vai ser chamado de “desvio”, “doente”, “decadente”. Nem vai ter de deixar a casa dos pais por vergonha. Nem terá de rezar sozinho em casa com medo de ser recriminado. Não aqui.
Pelo contrário: as muitas igrejas hoje têm voz, têm vez, têm lugar, têm representação no Congresso, têm vendilhões (autorizados) no templo e têm isenção de César ao que é tributário a César.
Tamanha presença não parece capaz de abrigar o desconforto de saber que, fora do altar, há quem não tenha voz, vez ou lugar. São calados diariamente pela violência e pelo constrangimento. No Brasil, parte significativa das empresas se nega a empregar trabalhadores gays. Travestis não podem estudar sem sofrer represálias de professores e colegas. Consequentemente, muitos não podem trabalhar. Nem frequentar espaços circunscritos às famílias ditas exemplares. Tipo o supermercado. Mas podem ser espancados e golpeados até a morte quando condenados a viver nas ruas. Tudo sob o nosso mais sacrossanto silêncio.
Comungar é tornar-se um perigo, me lembra a música da comunhão. É incomodar. E não tem nada mais incômodo do que lembrar que nossa devoção e adoração a símbolos sagrados não salva nossas multidões de carne e osso da crucificação.
Meses atrás, meio mundo se sensibilizou com as mortes dos cartunistas do semanário Charlie Hebdo com a inscrição “Eu sou Charlie”. Agora, confusos entre o que é provocação e o que é intolerância, muitos reaparecem armados de linguagem bélica para dizer o que é e o que não é admissível em uma manifestação.
Nossa busca pelo conforto da alma nos leva à sensação de uma falsa simetria no mundo material: a de que todos têm a mesma chance e a mesma capacidade de destruição. E que todo o resto, inclusive a vulnerabilidade diante da morte e da violência humana, é “opção”.
De vez em quando alguém desce da cruz para nos tirar da zona de conforto e nos lembrar qual é o lado da história que morre. Morre quem decide amar e mudar as coisas. Como morria-se há 2.000 anos.
Foto: Leo Pinheiro / Fotos Públicas
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