sexta-feira, 11 de setembro de 2015



O Brasil perdeu o selo de bom pagador. A confiança (eterna) na “sorte grande” saiu caro

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Sérgio Buarque de Holanda dizia que, nós, os brasileiros, temos um quê de Madame Bovary, a personagem de Gustave Flaubert marcada pela insatisfação crônica produzida pelo contraste entre suas aspirações e a desproporção da realidade.
“Bovarismo”, de acordo com o historiador, é “um invencível desencanto em face das nossas condições reais”. Quando a pessoa se considera outra que não é. Que aguarda algo “inesperado” para ver alterada a danada da realidade.
A expressão é resgatada por Lilia Schwarcz e Heloisa Starling no ensaio inaugural do livro “Brasil: Uma Biografia”. O prefácio antecede um relato caudaloso de nossas misérias e violências a partir da colonização e da escravidão.
Esse bovarismo é ilustrado pelas autoras a partir de um artigo de Lima Barreto sobre suas esperanças de criança ao saber do fim da escravidão. A conclusão do escritor vale para os nossos dias: “Tenazmente ficamos a viver esperando, esperando…O quê? O imprevisto. O que pode acontecer amanhã ou depois; quem sabe a sorte grande, ou um tesouro descoberto no quintal?”.
Na virada do século atual, esse tesouro parecia ter sido encontrado quando foi anunciada a descoberta de reservas gigantescas de petróleo na camada do pré-sal. Em poucos anos, previa-se, essa riqueza seria arrancada do nosso mais profundo adormecimento para jorrar em nossas escolas e hospitais. Era o combustível da decolagem anunciada pela Economist.
Entre 2007 e 2008, o estado de euforia era tanto que parecíamos passar ilesos da crise internacional. Com o grau de investimento, a previsão é que começaria a jorrar dinheiro estrangeiro por aqui.
Medidas anticíclicas de incentivo a setores-chave da economia com vista à expansão do mercado interno, e consequentemente dos grupos de consumidores, fechavam o ciclo do otimismo acelerado selado com o anúncio de nossa escolha como sede da Copa e das Olimpíadas.
Sete anos depois, o cenário é de terra arrasada, mais ou menos como o porto mirabolante de 47 embarcações do nosso futuro homem mais rico do mundo.
O tal contraste entre ilusões e realidade parece recapitulado em 2015, e entender suas ruínas é trabalho para exploradores das camadas do pré-sal da indigência.
Quem se debruçar sobre esses últimos sete anos terá material farto para resgatar Lima Barreto e nossa espera pelo inesperado. Pois a perda do grau de investimento anunciada pela Standard & Poor’s era tudo, menos inesperada - por mais que o coro dos contentes tenda agora a minimizar a avaliação de uma agência de risco; são elas que os investidores ouvem, e não nossos posts deboístas, para usar um termo da moda.
Nesses sete anos de ensaiada ascensão no cenário mundial em direção ao futuro, vícios de séculos passados foram atualizados e recontados. A começar pela ânsia imediatista de partidos, diretores de estatais bem escalados e fornecedores da maior companhia do país. O resultado é a Lava Jato, mas estava instalada aqui desde a exploração desenfreada do pau-brasil, da cultura canavieira baseada no escravismo, na extração de ouro e minérios. A diferença é que planos de longo prazo hoje são depositados em contas no exterior.
Essa ânsia imediatista passa também pela incapacidade de antever as mudanças. Por aqui, cansamos de (não) ouvir alertas da produção industrial enquanto comemorávamos o preço das commodities e seus resultados na balança comercial e na arrecadação, sempre mais sensíveis a variações.
Nosso trem para o futuro de bonanças é um produto que alavancou o mundo ao longo do século XX. No século XXI, a ordem é conter a dependência do petróleo e reduzir a emissão de gases de efeito estufa. É e será um produto importante para a cadeia produtiva, mas por aqui talvez não comporte, num futuro próximo, todas as esperas por um milagre.
Basta lembrar que no pico da euforia sobre o protagonismo brasileiro, chegavam ao mercado novidades tecnológicas vindas de fora, como celulares conectados a internet, que mudaram nossa ideia de deslocamento, conexão e mobilidade. Quando podíamos estar em tantos lugares sem estar, seguimos expulsando trabalhadores para as franjas a cidade e ampliamos a dependência do automóvel, do combustível, do asfalto e do sistema analógico de organização social. A queda dos níveis dos reservatórios não é outra coisa se não o sintoma de nossas escolhas que expandem e desertificam.
Para piorar, ficamos sabendo, pelo noticiário internacional, da desaceleração na China e da volta do Irã no mercado exportador de petróleo. A queda de uma demanda, de um lado, e o aumento de oferta, de outro, impacta agora no preço do barril do petróleo, e ele já não paga o custo da extração em camadas profundas.
Não é preciso ser especialista em mercado e economia para perceber o estrago das apostas em velhas receitas. Nesse caso o inesperado não é o tesouro, mas a sua dilapidação.
A perda gradual da confiança, entre anúncios atabalhoados de déficit e superávit, cortes de despesas e planos de aumento de impostos, manutenção ou queda de ministros, Agenda Brasil e boicote de opositores, é proporcional à surpresa diante do tamanho da crise.
O que ainda assombra é essa capacidade de se surpreender com a previsível distância entre sonhos e realidade. É, como nos lembram Lilia Schwarcz e Heloisa Starling, essa mania nacional de procurar pelo milagre do dia, pelo imprevisto salvador que Sérgio Buarque chama de ‘bovarismo’.”
Nada menos surpreendente do que aquilo que nunca deixamos de ser.


Foto: Cena do filme “Madame Bovary”, de Claude Chabrol