Uma curiosa mudança de percepção em relação ao governo Dilma está se produzindo no campo (que se considera) progressista, ou de esquerda. Dá vontade de brincar e dizer que a culpa é da deserção da Dilma Bolada – aquele perfil de “sátira a favor”. Ele (o publicitário Jeferson Monteiro) lançou no facebook o seguinte comentário: “Dilma não precisa do meu apoio no Governo dela, nem o meu e nem do apoio de ninguém que votou nela. Afinal, para ela só importa o apoio do PMDB e de parte do empresariado para que ela se mantenha lá onde está. Trocou o Governo pelo cargo (…) A vida é feita de escolhas e ela fez a dela. Agora o que nos resta é (…) repetir os versos de Beth Carvalho: ‘Você pagou com traição a quem sempre lhe deu a mão’”.
Isso não é exatamente justo com Dilma. Afinal, quem está inspirando a costura de acordos para o novo ministério é Lula – que teria dito em reunião com Dilma na semana passada que “é melhor perder ministérios do que a presidência”. Lula não só propôs a entrega de mais ministérios para tentar comprar a fidelidade do PMDB, como o deslocamento de elementos de sua estrita confiança: Jaques Wagner no lugar de Aloizio Mercadante na Casa Civil, e Ricardo Berzoini na coordenação política. No momento que as investigações de lobismo para a Odebrecht se intensificam sobre o ex-presidente, tirar o dilmista Mercadante e colocar o fiel Wagner no centro do poder era diminuir os riscos. Com Wagner e Berzoini, Lula volta a ter um papel considerável no comando do país.
Mercadante volta para o ministério da Educação, derrubando o professor Renato Janine Ribeiro, um dos poucos ministros que traziam respeito ao governo. Janine vai se juntar a Arthur Chioro, demitido da Saúde, ministério dos mais importantes para o governo, vaga aberta para o PMDB (incluindo um indicado que já havia sido vetado no ministério em 2011 por suspeita de assassinato). Hoje, quinta feira, outro ministro interessante, Juca Ferreira da Cultura, pode ir para a rua também. Ao contrário de outras decisões controversas, essa reforma ministerial está sendo percebida – como disse Dilma Bolada – como traição. Acontece que, se está resolvendo seus problemas, Lula não está resolvendo os do Brasil. Para se garantir, faz jogo duplo, mandando o PT e organizações do partido e próximas a ele, como a Fundação Perseu Abramo e a CUT, baterem na política econômica do ministro Joaquim Levy. Levy passou recibo, começando a exibir uma certa exasperação em falas e reuniões nas últimas semanas.
Lula aproveita o fato de que Dilma tem uma queda considerável para o arquétipo do bode sacrificial, ou seja, que a culpa cola nela mesmo quando não é dela (eu desenvolvo o assunto no texto Talvez a defesa da democracia dependa de derrubar Dilma). Mas a situação está degenerada o suficiente para que Lula não tenha a menor garantia de chegar à eleição de 2018 em posição competitiva. Não só a Dilma Bolada, mas uma série de figuras históricas começaram a abrir fogo contra as “habilidades” de Lula, como o jurista Hélio Bicudo, que apresentou pedido de impeachment de Dilma; o ex-prefeito de S. Bernardo na época das greves do ABC paulista, Tito Costa; o assessor especial de Lula para programas sociais no início da presidência petista, Frei Betto.
E, evidentemente, a ex-ministra de Lula – e desafeta de Dilma desde então – Marina Silva, cujo registro do partido Rede Sustentabilidade foi finalmente aceitopelo Tribunal Superior Eleitoral. Em seus primeiros dias, a Rede está indo bem. Ontem, quarta feira, com cinco deputados federais, já tinha o direito de participar do colégio de líderes da Câmara. E está atraindo nomes reconhecidos como o do deputado federal mais votado do Rio, Alessandro Molon (ex-PT), o jovem senador pelo Amapá Randolfe Rodrigues (ex-PSOL), Miro Teixeira (ex-Pros RJ) e Heloísa Helena (ex-PSOL AL). Se os petistas fiéis já se sentiam isolados, a sensação agora se aproxima da claustrofobia. E o PMDB, como de costume, cobra mas não entrega. O presidente da Câmara Eduardo Cunha já avisou que a recriação de um imposto do tipo CPMF (cuja maldade fica meio diluida nos aparentemente baixos valores) não passa no parlamento, mesmo sendo considerada essencial para o governo no reequilíbrio das contas. E o programa do partido, que foi ao ar na noite do dia 24, não só não poupou o PT como emitiu fortes símbolos no sentido do impeachment.
Neste texto, O nunca-antes-na-história-deste-país e o barata-voa, eu abordava a “virada da chave memética” que atinge Lula e o PT. “O ‘nunca antes’ queria significar que o PT trazia práticas políticas novas, que estavam transformando o país concretamente. Sua blindagem (de Lula) vinha desse clima de ‘magia’ psicossocial. Acontece que, quando as investigações expõem as vísceras dos governos petistas, esse ‘nunca antes’ vem cobrar seu custo. O PT se transforma de partido do ‘nunca antes’ em um partido do ‘como sempre’: do elitismo, da fisiologia e da corrupção”. O problema de se tratar um partido como religião é esse: o PT heróico, sagrado, se é incapaz de autocrítica, acaba arrastado na vala comum dos partidos profanos. Não só está sendo tomado pelo seu oposto, como concretamentevirou seu oposto.
Eu acho que existe todo um peso cristão-ibérico-comunista-culpado na narrativa épica que o PT adotou esses anos, e particularmente (“coração valente”) ao neutralizar a ameaça eleitoral de uma ex-companheira, Marina. No fundo esse peso corresponde à demanda de um psiquismo masoquista, crédulo, chiliquento e desinteligente, que acreditou votar em Dilma como se o país estivesse diante de uma “séria encruzilhada”. E não de um processo de aprendizado contínuo e crescimento político, no qual Marina tinha, sim, legitimidade. Pois é agora que o psiquismo petista enfrenta a real encruzilhada, e ela não se resolve mais de maneira binária, com declarações moralistas (do pau oco). Política tem muito de jogo – no limite, aliás, é jogo puro. E Lula, que já foi um brilhante jogador, perdeu totalmente a mão.
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