quinta-feira, 1 de outubro de 2015




O “sagrado” e o “profano” no PT


Abaixo, textos citados por Alex Antunes

A queda de Dilma

11 de março de 201570
Dilma parece à beira do abismo. Parece que Dilma vai se atirar.
Olhando à distância, aqui do Norte, é essa a impressão. A triste impressão. A não ser que a presidente e seus auxiliares compreendam o que está acontecendo. E, pelo discurso governista, é evidente que não estão entendendo nada. Nem ela e, surpreendentemente, nem Lula, um dos políticos mais sensíveis da história do Brasil.
É que, às vezes, o detalhe decisivo é isso mesmo: só um detalhe. Porém, decisivo. No caso, há que se levar em consideração um objeto pequeno, do tamanho da palma da mão: o telefone celular.
Essa ferramenta mudou o mundo. A história do homem é a história da velocidade da informação, e nunca, em 12 mil anos de civilização, a informação foi tão veloz. Desde os albores do século 21, o celular dotado de internet permite que as pessoas absorvam e transmitam informação a todo momento, obsessivamente, ansiosamente, num processo que é interrompido apenas pelas horas de sono. A transformação não ocorre mais na poeira dos séculos, nem de ano para ano. Ocorre em meses.
O Brasil que está ingressando no outono de 2015 não é o mesmo da primavera de 2014.
Agora vou me lembrar de antes. De uma noite carioca de 2007. Oito anos, transcorridos no século 21, correspondem a uma geração inteira. Pois em 2007 Lula foi vaiado por 80 mil pessoas no Maracanã, durante a abertura do Pan. No dia seguinte, escrevi o que escreveriam hoje os governistas: “Foi a vaia da elite branca”.
Não me arrependo do que escrevi. Em 2007, Lula começava o segundo mandato. Pensei, então: a partir de agora, com a estabilidade econômica e o assentamento dos programas sociais, Lula terá condições de fazer as mudanças estruturais de que o país precisa – essa vaia é precipitada.
Ainda acho que foi precipitada. Mas foi também premonitória. Aos poucos, o que a elite branca sentiu naquela noite passou a ser sentido por outros setores da sociedade. As pessoas não estavam vivendo bem no Brasil, simplesmente isso. Há dois anos, num junho furioso, o desconforto latejante explodiu, só que em todas as direções, sem alvo preciso. Nas eleições do ano passado, essa insatisfação tornou-se amarga, mas as pessoas ainda não sabiam para onde fugir, porque os caminhos alternativos não eram bons. De lá para cá, o sentimento mudou: virou revolta.
O grande engano do governo, o grande engano de analistas inteligentes, como Juca Kfouri e Verissimo, é não perceber a rapidez dessa mudança. É achar que estamos em 2007. Porque, não: não é só a elite branca que está vaiando o governo. Não são só os ricos. É uma massa gigantesca de trabalhadores, de empresários e assalariados, de gente que produz e contribui. E quer saber? Essa gente está pouco se lixando para o PSDB ou para o Aécio Neves. Essa gente não é patrocinada pela oposição, não é mobilizada pela mídia burguesa e tampouco está indignada porque a classe média viaja de avião. Essa gente está vivendo mal no Brasil. Essa gente sente insegurança nas ruas, sabe que os professores de seus filhos ganham pouco e paga promessas e planos de saúde para não depender do SUS. Junte isso à corrupção que borbulha dos esgotos de Brasília e a uma presidente desconectada com a realidade e teremos, sim, ambiente para abalar um governo.
Sou contra o impeachment sem provas concretas de ilícito da presidente. Pedir impeachment porque a vida não vai bem é golpe. Mas, se o governo não reconhecer pelo menos que a vida não vai bem, a vida decerto vai piorar. Tudo vai piorar. Inclusive, e principalmente, para o governo.

Talvez a defesa da democracia dependa de derrubar Dilma

Fora a conjuntura cruel, há dois aspectos cruzados no psiquismo de Dilma e do PT que criam uma enorme dificuldade para caminharmos para fora da crise política (e da econômica, crises que se realimentam). PT e PSDB vieram praticamente dos mesmos ambientes e do mesmo momento político expansivo da sociedade brasileira, na década de 1980. Uma parte considerável de seus quadros poderiam estar inicialmente em qualquer um dos dois partidos.
Por isso são partidos reformistas muito parecidos em diversos aspectos. O esforço de negar um ao outro tem mais a ver com semelhanças do que com diferenças. Como definiu um amigo meu, essa negação caminha na direção do narcisismo das pequenas diferenças, uma rivalidade imaginária do campo dos irmãos. Os perfis que vieram a se consolidar têm muito a ver com a diferente política de alianças – sempre determinada pela exclusão de um pelo outro.
A aliança entre o PSDB e o PFL de Antonio Carlos Magalhães, em 1994, que marca a primeira inclinação à direita dos tucanos, substitui uma aliança que seria muito mais natural politicamente, com o PT. Da mesma forma, o PT no poder desenvolveu uma relação completamente promíscua com o PMDB e demais partidos fisiológicos da base (promiscuidade que está na origem de escâncalos como o mensalão e o petrolão). E foi sempre pela exclusão da possibilidade de convergir onde possível com o PSDB. Uma guinada não à direita ideológica, mas à recolha de resíduos contaminados da lixeira política, como Collor, Maluf e Sarney (que aliás veio a público dizer risivelmente que Dilma é a “sacerdotisa do serviço público”).
Há um outro problema, esse universal. É o psiquismo prometéico da esquerda (do mito de Prometeu), o clichê do herói incompreendido. Obviamente todo político, de qualquer matiz ideológico, enfrenta as mesmas escolhas éticas – mas o político de esquerda o faz como se estivesse imbuido de algum tipo de missão sagrada, que o diferencia dos outros. Nesse sentido, o político de direita é para ele o traidor da humanidade, na mesma medida em que ele é o salvador.
Isso o desculpa de frequentemente estar à direita da direita, e de ser até mais corrupto que ela. Porque o faz em nome dessa entidade abstrata, o “povo”. O que também garante a total irracionalidade de suas motivações e explicações, para todo aquele que não partilha desse psiquismo. Em compensação, quem partilha do gozo do sofrimento prometéico (que é a mesma matriz do psiquismo católico), tende a entrar em modo defensivo junto com seus “cristos” sacrificiais. Note que a melhor fase de Lula é exatamente quando ele se descola dessa programação de insucesso.
Já o PMDB, que (junto com os outros fisiológicos) é o que representa melhor a picaretagem ostensiva, corre sempre por fora. Quando o PT começa a cheirar a carniça, o PMDB, o grande fiador (na verdade agiota), também começa a se deslocar oportunisticamente de posição no barco. A sensação de desequilíbrio é grande, e a irracionalidade dos discursos vai a novos patamares. Nesta entrevista o cientista político Pedro Ribeiro faz observações interessantes sobre o “fim de ciclo”, mesmo que em duas semanas o quadro já tenha evoluído.
Nesse impasse, há uma enorme energia psicossocial, acumulada com todas as expectativas criadas ao longo das três presidências do PT, que procura uma saída. Já procurava nos protestos de 2013, contra “tudo o que está aí”. E que agora está encontrando um alvo: é Dilma. Ela tentou, como no ano passado, surfar na memética favorável do Dia da Mulher – mas este ano não deu certo. Converteu-se num fail épico (Dilma dá tiro no pé monstrão), mas de qualquer modo ela também não poderia fazer muito melhor, refém das armadilhas que ela mesma criou (Dilma está errando porque… não tem como acertar). O papel de bode expiatório afinal é coerente com o do herói sacrificado.
Tirar Dilma não resolve grandes coisas, mas ela é o bode da vez. Quanto mais alastrado e complexo o problema, mais desesperadamente as pessoas vão precisar de um ponto focal para atacar. O impeachment pode vir a ser encarado como uma redistribuição das cartas, quando a mesa do pôquer político está à beira de um tiroteio. O PT gostaria muito que o bode fosse “a política como um todo”, como em “necessidade da reforma política”. Até faz sentido.
Mas a falta de autoridade presidencial não permite que se conduza reforma nenhuma. Crise política, crise econômica e a crise “policial” (as investigações do petrolão) seguirão se realimentando umas às outras. Mesmo as análises da esquerda menos fantasista não apontam saídas fáceis, como notam Antonio Martins, do Outras Palavras, e Lino Bocchini, da Carta Capital. Esta análise de David Coimbra também é arguta.
Tudo trava em Dilma. Não só o país. O futuro do PT e de Lula travam em Dilma. Toda a credibilidade da presidente é herdada de Lula, e chegou o momento em que, ao invés de se alimentar dela, está erodindo o patrimônio político de seu mentor muito rapidamente. É um momento em que até o Clube Militar, o arauto dos milicos de pijama, consegue ser mais sensato que o líder petista em processo de encolhimento. O normalmente astuto Lula também é arrastado para a ansiedade e o erro.
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Acontece que Dilma já fala como bode e, pior, está indo para a posição do bode com seus próprios pés: “Eu não sou Getúlio. Não sou Jango. Não sou Collor. Não vou me suicidar. Não faço acordo. Não renuncio. Os nossos adversários terão de assumir que não passam de um bando de golpistas que não respeitam a vontade soberana do Povo brasileiro”, disse ela, na semana passada. Seus simpatizantes reagiram horrorizados a uma charge de Chico Caruso n’O Globo, que reproduzimos ao lado. Mas a charge apenas capta o arquétipo do bode.
Como disse o jurista Ives Gandra Martins em seu parecer, no início do mês passado, a abertura de um processo de impeachment presidencial por improbidade administrativa é mais um problema de natureza política do que jurídica. E podemos chegar logo ao ponto em que um impeachment significaria não o questionamento da democracia, mas o contrário: um passo para a sua manutenção. O novo carteado para aliviar o jogo. FHC já estava conversando com emissários do PT sobre saídas para a crise, quando Dilma jogou a culpa da corrupção da Petrobrás nele. Assim fica difícil respirar.
Nos protestos de 2013 a esquerda foi para a rua, e levou a direita. Agora a direita começa a trazer a esquerda de volta. Foi assim nas manifestações de ontem, sexta feira. Com uma coisa todos concordam: ninguém está satisfeito. Há uma maneira para não caminharmos para um clima de golpe de direita: é a esquerda aceitar o jogo, e aderir à tese do impeachment. Isso nos afastaria de um impasse “bolivariano”. Nesta interessante análise, baseada em dados reais, Fábio Malini demonstra que, pelo menos no ambiente virtual, Dilma não tem nenhuma defesa sólida. Ela se parece mais com uma piada – ou com um bode.
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